O lítio, amplamente utilizado como estabilizador do humor em transtornos bipolares, possui um índice terapêutico estreito, o que torna a intoxicação uma complicação clínica relativamente comum. Reconhecer precocemente a intoxicação e instituir tratamento adequado pode prevenir sequelas neurológicas graves e reduzir mortalidade.
Fisiologia e farmacocinética do lítio
* É absorvido rapidamente por via oral, com picos séricos entre 1 a 2 horas (liberação imediata) e 4 a 6 horas (sustentada).
* É distribuído livremente na água corporal total (volume de distribuição: 0,6-0,9 L/kg), sem ligação proteica.
* A eliminação é renal e semelhante à do sódio: filtrado livremente e reabsorvido em >60% nos túburos proximais.
* A meia-vida é de 18 horas em adultos e 36 horas em idosos.
Tipos de intoxicação
1. Aguda: Ingestão em paciente sem uso crônico. Síntomas gastrointestinais são predominantes (náuseas, vômitos, diarreia).
2. Aguda sobre crônica: Ingestão aguda em paciente que já usa lítio. Manifestações GI e neurológicas precoces.
3. Crônica: Toxicidade por acúmulo em pacientes em uso prolongado. Predomínio de sintomas neurológicos (ataxia, confusão, tremores, encefalopatia).
Fatores precipitantes
* Hipovolemia (por vômitos, diarreia, febre, diuréticos).
* Insuficiência renal aguda.
* Uso de medicamentos que reduzem a excreção de lítio: diuréticos tiazídicos, IECA, BRA, AINEs, verapamil, entre outros.
* Idade avançada: maior suscetibilidade à toxicidade, mesmo com doses menores.
Achados clínicos
* Gastrointestinais: náuseas, vômitos, diarreia.
* Neurológicos: lentidão, ataxia, agitação, tremores grossos, fasciculações, mioclonias, convulsões, estado epiléptico, coma.
* Renais: poliúria e polidipsia por resistência ao vasopressina (diabetes insipidus nefrogênico).
* Cardíacos: raramente graves; pode haver bradicardia, QT prolongado, bloqueios.
Diagnóstico
* Suspeitar em pacientes em uso de lítio com sinais neurológicos ou sintomas GI.
* Solicitar litemia (sérica): o valor terapêutico é 0,8 a 1,2 mEq/L.
* Em toxicidade crônica, sintomas podem surgir com litemias entre 1,5 e 2,5 mEq/L.
* Sintomas graves geralmente acima de 3,5 mEq/L, mas a correlação entre litemia e gravidade não é absoluta.
Tratamento
1. Suporte clínico e hidratação: Iniciar com SF 0,9% em bólus e manter infusão em 1,5-2x a taxa de manutenção. A ideia é garantir uma diurese de 1,5-3 ml/kg/h. Descontinuas apenas quando o nível de lítio por <1 mEq/L. A ideia é corrigir hipovolemia e aumentar a excreção de lítio.
2. Decontaminação gastrointestinal (somente para casos agudos): Lavagem intestinal com SNE (via SNG) para grandes ingestas (>10-15 cp).
3. Hemodiálise: Quando e como Prescrever?
###### Indicações absolutas:
* Sintomas graves (coma, convulsões, instabilidade hemodinâmica)
* Litemia >4 mEq/L com disfunção renal (TFGe <45 ml/min/1,73m², Cr >2 mg/dL ou duplicação da creatinina)
###### Indicações relativas, considerar hemodiálise se:
* Litemia >5 mEq/L
* Não ter uma estimativa de redução significativa da litemia com tratamento clínico nas próximas 36h com hidratação isolada.
* Casos de Litemia >1,8-2 mEq/L com disfunção renal (TFGe <50 mL/min/1,73m²)
###### Recomendações sobre hemodiálise e monitoramento pós-diálise:
Recomenda-se monitorar a litemia 6 horas após o término da hemodiálise, a fim de identificar efeito rebote, devido à redistribuição do lítio do compartimento intracelular para o extracelular.
Uma única sessão de hemodiálise de 6 a 8 horas geralmente é suficiente para reduzir a litemia para valores <1 mEq/L (aumentar tempo para casos mais graves).
A realização de uma segunda sessão pode ser necessária em dois cenários principais:
Para garantir maior segurança clínica, especialmente em casos de toxicidade grave;
Se houver reascensão dos níveis séricos de lítio no controle pós-diálise, sugerindo rebote significativo.
4. Outras condutas:
* Monitorar eletrólitos, função renal, ECG.
* Avaliar função tireoidiana e paratireoidea.
* Internação em UTI se sintomas graves.
* Avaliação psiquiátrica nos casos de ingestão intencional.
Conclusão prática: A intoxicação por lítio é uma urgência nefrológica que exige suspeição clínica e intervenção precoce. O manejo adequado com hidratação vigorosa e hemodiálise quando indicada previne complicações graves, como encefalopatia e a síndrome SILENT (encefalopatia irreversível). O nefrologista ocupa papel central nesse cuidado, tanto no agudo quanto na prevenção da toxicidade crônica.